Enxovalhar o técnico quando a seleção perde a Copa é do jogo. Faz parte da cultura nacional espancar o treinador fracassado como se fosse um falso messias, o traidor da nossa autoimagem de povo escolhido pelo deus do futebol.
Escolhemos o treinador da seleção como a um profeta. Esperamos que ele seja o nosso messias, um Jesus moderno.
Se ganha a Copa, o técnico é santificado. Mesmo que boa parte dos brasileiros não gostem de Felipão, de Parreira e de Zagallo, nós temos que engoli-los e, mais do que isso, cultuá-los por toda a eternidade, pois trouxeram o fogo sagrado do futebol para casa (vai dizer que você não sabia que dentro da taça há uma chama que nunca se apaga?).
Se perde, o treinador é crucificado. Nós, o povo eleito do futebol, recusamos o perdão àquele que nos fez sonhar que iríamos receber a taça, que significa a bênção de Deus, e depois não realizou essa esperança.
Assim, mandamos ele para a cruz. Toleramos o Barrabás do presidente da CBF, mas o treinador, não.
Quando o técnico é imolado, vale dizer qualquer besteira para condenar naquele que ousou nos negar o prêmio que é brasileiro por direito divino.
Não bastou Tite ter montado uma das maiores defesas da seleção em todos os tempos, de ter mantido a seleção sem crises internas por seis anos, por ter tentado enfrentado suas próprias convicções. Não bastou ter sido reconduzido com apoio quase unânime.
Se perdeu, ainda mais com essa equipe, se nos deu esperanças concretas, ele precisa ser imolado.
E na narrativa para imolar ou adular o falso profeta, a história é reescrita de frente para trás, jogo após jogo.
Quando o Brasil empatava o primeiro tempo com a Croácia, o clima era de apreensão, pequenas críticas. Após os dois gols de Richarlison, foi decretado: o Brasil fez uma grande partida do começo ao fim.
Após a vitória magra sobre a Suíça, faz-se pouco caso dos defeitos.
Mas, quando uma equipe só de reservas perdeu para Camarões por um gol nos acréscimos finais, comentaristas disseram que o Brasil estava sem rumo e que não havia feito nenhum jogo bom até ali.
Após a goelada sobre a Coreia do Sul, o clima inverteu. Tiago Leifert decretou que o Brasil só havia feito partidas boas, mesmo na derrota para Camarões.
Aí veio a Croácia. Depois de controlar o jogo, finalizar 22 vezes a gol, o Brasil permitiu um chute, levou o empate e caiu nos pênaltis. Imediatamente, tudo o que havia de bom no trabalho da seleção, e em particular de Tite, foi apagado de uma forma que nem Stálin, o ditador soviético, conseguia fazer. Só faltou reexibir a foto oficial da seleção na campanha de 2022 com um espaço vazio no lugar do técnico.
Se ainda tem dúvida, compare os jogos que foram para os pênaltis. A Argentina sofreu empate no último lance do jogo. Ganhou nos pênaltis, que não são loteria, mas nada têm a ver com o jogo. Como a Argentina venceu, todas as suas qualidades a respeito do jogo foram realçadas.
E o mesmo aconteceu com o Marrocos e um pouco com a Croácia (não muito, para que seus méritos não amenizem a situação do Brasil).
Imolar o técnico derrotado parece ser uma diversão nacional, como já se fez com bruxas e médicos charlatães.
Só que isso não ajuda nada a recuperar a Copa do Mundo.
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