O futebol, como tantos outros esportes, tem o poder de ser mais do que um simples jogo; pode ser uma força transformadora capaz de salvar vidas. Tanto em uma perspectiva mais ampla, ao ser adotado como parte de políticas públicas para os jovens, quanto em um nível mais individual, o relato inspirador de Shamar Nicholson evidencia como a paixão pelo futebol pode servir como uma tábua de salvação em meio a circunstâncias desafiadoras.
Esse jovem, focado em uma atividade esportiva física e/ou mental (por exemplo, o xadrez), estaria, teoricamente, mais longe de “se perder na vida”: seguir o caminho da criminalidade, envolver-se com drogas, andar com más companhias e outros desvios periculosos.
No sentido micro, individualizando-se a questão, um jogador que hoje atua na França afirma que o futebol o livrou de uma situação que possivelmente resultaria em sua prisão ou até em sua morte.
Shamar Nicholson, 26, é jamaicano nascido em Kingston, a capital do país caribenho. Cresceu em Trench Town, um gueto da cidade de 1,2 milhão de habitantes conhecido pelo dia a dia de violência e delinquência.
Para tentar não se envolver com o ambiente nocivo ao seu redor, Shamar, reconhecidamente um brigão (“eu era um encrenqueiro”, afirma o próprio), começou a direcionar sua energia para jogar bola, frequentando o Boy’s Town, clube da vizinhança.
Em 2015, contudo, ocorreu uma tragédia familiar que o fez interromper a atividade esportiva. Seu pai foi morto a tiros durante uma partida de futebol, e o assassino era alguém que Shamar conhecia.
“Meu pai era meu ídolo, eu o admirava. É difícil ter pensamentos positivos quando perdemos alguém que amamos”, declarou o jogador em entrevista à revista francesa So Foot.
Com a raiva à flor da pele, pensou em se tornar um gângster. “Quando ele [pai] foi morto, a violência estava crescendo dentro de mim. Eu estava saindo com as pessoas erradas. Pensei em fazer coisas ruins, em matar gente.”
“Eu poderia ter conseguido uma arma, é mais fácil do que você pensa. As pessoas especulavam, diziam: ‘Com certeza ele vai se vingar e se tornar uma pessoa ruim’.”
De acordo com Shamar, seus parentes, em especial sua mãe, o impediram de se entranhar em vias tortuosas. “Eles me disseram: ‘Lá, ou você morre ou vai para a prisão. Você não pode viver assim’.”
A decisão foi difícil, porém ele conseguiu, com o apoio familiar e lembrando de acontecimentos pesados no mundo do crime (“tenho amigos que morreram”), retomar o foco no esporte.
“Concentrei-me totalmente no futebol. Sem distrações. Decidi fazer todos os sacrifícios necessários para me profissionalizar no exterior.”
Shamar prosseguiu atuando no Boy’s Town, mesmo sem receber salário. Atacante grandalhão (1,92 m) e artilheiro, chamou a atenção apenas, contudo, de um clube da periferia da Europa, o Domzale, da Eslovênia, em 2017.
Mesmo assim, não hesitou. “Disse a mim mesmo que era a melhor oportunidade para eu ir mais longe.”
Os primeiros meses nos Bálcãs foram duros: hotel-treino-hotel-treino-hotel. Shamar não tinha amigos, a comida e o clima eram estranhos, não falava o idioma. Em seu quarto, ele chorava.
Mas as boas atuações no time renderam ao obstinado jamaicano uma transferência em 2019 para um centro de maior expressão, a Bélgica. Passou a defender o Charleroi, onde permaneceu por três anos.
No ano passado, depois de uma temporada em que marcou 13 gols no Campeonato Belga, valorizou-se e foi negociado com o Spartak de Moscou, um dos grandes times da Rússia, por 8 milhões de euros (R$ 43 milhões pelo câmbio atual).
Nesta temporada, o Spartak o emprestou ao Clermont Foot, da primeira divisão da França, país que tem um dos principais campeonatos nacionais na Europa.
Lá, Shamar tem encarado o desafio da luta contra o rebaixamento. Sua equipe, uma das mais fracas da liga, está na última colocação –o líder é o PSG, 29 pontos à frente. Em 13 partidas, o camisa 23 anotou somente dois gols.
O titular da seleção jamaicana, porém, olhando em retrospectiva, não se vê em situação que deva ser lamentada, pelo contrário. E quer que sua escolha e seu progresso sejam exemplos na Jamaica.
“Mudei e tenho orgulho, porque muitas crianças poderão se identificar com a minha jornada.”