Para receber turistas de diversas nacionalidades, o Qatar decidiu arrefecer seu regime. Fez vista grossa, por exemplo, às recomendações de que os visitantes deveriam vestir roupas que evitassem ombros à mostra e estivessem acima dos joelhos. Não impediu que casais fora do matrimônio reservassem quartos juntos, embora sexo antes do casamento possa render sete anos de prisão.
E apesar de sua legislação considerar a homossexualidade crime passível de morte, o emir Tamim bin Hamad Al Thani disse que a comunidade seria bem-vinda. O arco-íris, porém, segue como ponto de tensão na Copa do Mundo do Qatar.
A proibitiva legislação contra o grupo LGBTQIA+ no país tem restringido a combinação de cores em diversos itens, independentemente de sua finalidade. As forças de segurança qatarianas têm confiscado objetos e reprimido torcedores independentemente de se relacionarem com a causa.
Em meados de novembro, por exemplo, a bandeira de Pernambuco foi confundida com o símbolo LGBTQIA+ nos arredores do estádio de Lusail. Victor Pereira, 28, costumava andar com a flâmula na mochila a fim de tirar fotos com conterrâneos.
Em uma das ocasiões, um homem viu a pernambucana com quem o brasileiro havia acabado de fazer o registro com a bandeira nas mãos, tomou o tecido dela e pisoteou a flâmula. Pereira já havia se afastado e, ao ver a agressão, começou a filmar. Quando o homem percebeu, tomou o celular de suas mãos e ameaçou quebrá-lo. Ao notar a movimentação, um policial se aproximou e, ao invés de proteger os brasileiros, apagou o vídeo do celular de Victor.
“Me perguntaram se eu imaginava que a bandeira de Pernambuco poderia dar problema. Não. A bandeira de Pernambuco não é nem um arco-íris, é um arco com três cores”, diz.
Situação semelhante aconteceu com o cinegrafista que acompanhava a jornalista da BBC, Natalie Pirks, A profissional conta em uma postagem em suas redes sociais que estava chegando na partida da Inglaterra contra os Estados Unidos e o cinegrafista foi inicialmente impedido de entrar no estádio Al Bayt, em Al Khor, pois usava uma pulseira de relógio com as cores do arco-íris.
“Acabei de chegar ao estádio Al Bayt para o jogo da Inglaterra e meu cinegrafista, usando a pulseira de relógio colorida que seu filho lhe deu, foi parado pela segurança e impedido de entrar. Claramente, a mensagem da Fifa ainda não está sendo transmitida”, escreveu Pirks.
Na postagem seguinte, sem dar muitos detalhes, a jornalista informa que conseguiu entrar no estádio.
O mesmo ocorre se o arco-íris é usado em favor dos direitos da comunidade LGBTQIA+. O professor Justin Martin, que leciona no Doha Institute for Graduate Studies, contou em uma publicação no seu Twitter que um homem o empurrou contra a porta do metrô da cidade por ele carregar uma pequena bandeira com as cores do arco-íris. Outro ainda teria o chamado de “nojento”.
“Um torcedor polonês disse que aquele homem havia dito que iria me matar”, escreveu.
Na partida do País de Gales contra os Estados Unidos, no estádio Ahmad bin Ali, torcedoras tiveram seus chapéus do time europeu confiscados pelos arco-íris presentes em torno do item.
“Nenhum homem, só mulheres?”, afirma a conta The Rainbow Wall, de torcedores LGBTQIA+ do país.
Cerca de uma semana após a partida, um posicionamento oficial da Fifa indicou que itens com as cores do arco-íris seriam permitidos nas arenas do Mundial. A Fifa dizia que estava ciente de incidentes em que itens liberados estavam sendo barrados nos estádios e que recebeu garantias das autoridades locais em relação ao cumprimento dessas regras.
Para a antropóloga Francirosy Campos Barbosa, docente da USP (Universidade de São Paulo) e coordenadora do coordenadora do Gracias (Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes), a vigilância repressiva em torno do arco-íris LGBTQIA+, mas arrefecida para outras questões sensíveis para o regime, ocorre pois a família composta por homem e mulher é fundamental no islamismo.
A legislação qatariana tem como base a “sharia”, a lei islâmica tradicional.
“A religião tem uma coisa em que você não apresenta o seu pecado”, pontua. “Então a partir do momento em que você coloca uma camisa, que você expressa, você está expondo o seu pecado.”
O Qatar é conhecido por suas restritivas leis em relação aos direitos humanos. Desde que foi anunciado como sede da Copa, ativistas têm incentivado o boicote ao evento.
Meses antes do início do campeonato, a organização Human Rights Watch emitiu nota afirmando que forças de segurança qatarianas arbitrariamente prenderam gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros.
Em novembro, o ex-jogador da seleção do Qatar e embaixador da Copa Khalid Salman chamou a homossexualidade de “dano mental”. Ele acrescentou que ser gay é um “haram”, pecado proibido no islã.